1 - A MUDANÇA

 A chegada em uma nova cidade, junto com seus pais e irmão, significava uma grande mudança na vida de Denise. A menina da cidade grande, acostumada com agitações, viu-se perdida na tranquilidade de uma pequena e pacata cidadezinha do interior. Seu pai, Valmir, um empresário cansado da vida de executivo de multinacionais, havia comprado uma fazenda em Guaraçaí, em um bairro longe da cidade, chamada Iguatemi. 

Logo nos instantes iniciais da chegada, ela comentou com sua mãe: 

- Esse lugar é muito careta. Só tem caipira, povo ignorante. Eu não nasci para viver num lugar desse.

- Pois eu não concordo – retrucou Donana, sua mãe. - Pensando bem, acho que vou gostar deste lugar. A tranquilidade; o som do vento, correndo livre pelos campos; os pássaros cantando, voando pelo céu azul; o barulho da cascata, correndo livremente; Ah! Deverá ser gostosa a vida no campo!

- É, há gosto pra tudo... – Disse a jovem de quatorze anos, morena de cabelos até o pescoço. Grande aluna de piano, que trazia dentro de si, a poesia. Porém, ela não era de demonstrar esse lado sensível. Quem não há conhecia bem, elaborava uma imagem de uma adolescente odiosa de nariz empinado. 

* * *

Os primeiros dias foram praticamente de adaptação à nova casa na fazenda, arrumação das coisas. Mas logo chegou a hora de voltar aos estudos. Ao contrário da grande cidade, ali não havia colégio particular. Todos, ricos e pobres, estudavam na mesma escola estadual, em um gesto democrático que permanecia nas pequenas cidades. Aliás, haviam duas naquela cidade: a “Valeriano Fonseca”, primeira à oitava série e a “Juventino Nogueira Ramos”, com o colegial e cursos técnicos de contabilidade e magistério. Denise estudaria na primeira. No primeiro dia, seu pai foi levá-la de carro, mas depois ela iria tomar o ônibus dos estudantes, mantido pela Prefeitura que percorria toda a zona rural...

 A escola era um prédio antigo, anos 60, com um extenso corredor central, abrigando todas as portas das classes. Paredes altas. Um grande pátio coberto, com palco para festejo de datas comemorativas, uma quadra de esportes com arquibancadas de cimento, com campo de pura terra e algumas árvores. Ao todo, a escola tomava um quarteirão quadrado inteiro. O que ficou marcado mesmo na memória de Denise, foram algumas atitudes e muitos eventos. Tinha como figura emblemática, uma inspetora de alunos, Dona Koti, que batia o sino na hora de entrar nas salas de aulas, momento em que todos os alunos ficavam em fila, quietos. Aos indisciplinados, quantas varetadas de bambu ela dispensava nas suas pernas de brincadeira... Nas datas comemorativas, ocorriam os festivais de dublagem, de música sertaneja, as gincanas.Os doces e salgados vendidos no portão de entrada por Dona Maria, as balas Jujuba, Solft, Drops Kids, Balinhas da Garoto. A galera jogava ping pong no piso do pátio antes de entrar e na hora do recreio... Sem se falar do “sagrado” Culta à Bandeira, quando todos os alunos cantavam o Hino Nacional às sextas-feiras.

  No primeiro dia de aula, havia uma grande euforia por parte de todos os alunos, em conhecer suas classes, professores e colegas. Menos por parte de Denise que estava se sentindo perdida em um ambiente tão estanho ao seu; mas por já estar na 8ª série, não teve muito trabalho para fazer amizade. Logo conheceu Sâmara, Lena, Tininha e outros amigos da classe de seu nível social. Conheceu também, Carminha, vizinha de sua fazenda e estava na mesma classe.

- Você é nova aqui, Denise?

- Sim, Carminha. Cheguei há pouco tempo. A turma aqui, parece ser igual. Pelo que já percebo, vocês não fazem distinção de classes...

- É, aqui todo mundo é amigo! Logo você vai ficar amiga de todos, vai gostar do nosso modo democrático de ser – respondeu Sâmara.

“Só espero que não seja uma turma chata ...”- Pensou Denise.  

Triiiim... Tocou o sino. A caminho da classe, continuou a conversa.

- O que vocês fazem de sábado à noite?

- Denise, nós vamos pra praça, ou pra lanchonete e depois para o baile.

- E você, Carminha, vem todo fim de semana?

- Às vezes. E você, costuma sair?

- Onde eu morava sim. Mas aqui não sei se meu pai vai deixar...

 Na classe ela conheceu pessoas muito interessantes, como Gugu, um menino magro com a cara cheia de espinhas, France um baixinho que apoiava o comunismo e Cássio um gordo odioso e chato. Durante a aula de ciências, Denise voltou a pensar: “Que pessoal engraçado. São todos gozadores, tudo louco. Mas também tem cada figura nesta cidade. Cada chapéu atolado. Nesta classe mesmo, tem um monte de caipiras. Por exemplo, o Cássio é caipira até no falar...”  

* * *

Após a primeira semana de aula, amanheceu o sábado. Denise, ao se levantar, foi direto ao escritório da fazenda, onde seu Valmir trabalhava:

- Pai, hoje minhas amigas vão em uma brincadeira dançante na cidade. Posso ir?

- Vocês vão do quê, filha?

- De carro com o irmão da Carminha. Posso?

- Sim, filha, pode, mas cuidado, você ainda é nova nesta cidade. –

 Sim, pai. Eu terei cuidado. Obrigada.

 Chegou o fim-de-semana e com ele, como sempre, toda uma alegria da lanchonete, da praça, brincadeira dançante ou do baile. Denise, Carminha, Lena, Sâmara e Tininha, vão para um barzinho muito simpático chamado Porão, por se localizar justamente no subsolo do Guaraçaí Clube. Num gostoso bate papo, Tininha percebeu uma coisa.

- Denise?

- Fala...

- Tem uma mesa ali no canto, com uns rapazes. Um deles que não tira os olhos de você.

- Qual?

- Adivinha...

- É o louro?

- Não.

- Aquele todo de jeans?

- Também não.

- Aquele de cordão de ouro?

- Não. Posso falar?

- Pode...

- O Cássio!

Essa não! Cada gato e um caroço de um caipira atrás de mim” – pensou Denise.

 Mais tarde, elas foram para o CESE, um clube de danças, que ficava do outro lado da cidade, um bairro mais simples. Aliás, a cidade era cortada ao meio pela linha férrea e, aquele lado era a chamada Vila Operária. Para chegar a ele, elas tiveram que passar por dentro da velha Estação de trem, pular as linhas de ferro e caminhar um pouco por chão de terra. Sendo um clube de madeira, construído na década de 60, o CESE atendia todas as necessidades das grandes danceterias das grandes cidades e era frequentado por todos os tipos de pessoas. 

Era a década do “Rock in Rio”, enquanto a “Armação Ilimitada” era a sensação na televisão, como a novela “Brega e Chique”. No cinema estourava “Namorada de Aluguel” e o filme brasileiro “A menina do Lado”. As bandas nacionais traziam muita alegria e cores em letras que mais pareciam crônicas do cotidiano. Surgiram os grupos de uma música só: ABG, Afrodite se Quiser, Conexão Javari, Dr Silvana e CIA, Grafite, Heróis da Resistência, Inimigos do Rei, Jão Penca e seus Miquinhos Amestrados, Magazine. E muitas bandas que permaneceram por muito tempo. Barão Vermelho, Biquíni Cavadão, Blitz, Camisa de Vênus, Capital Inicial, Engenheiros do Hawaí, Ira, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, Legião Urbana, Nenhum de Nós, Paralamas do Sucesso, Plube Rude, RPM, Titãs, Ultrage a Rigor. 

As moças usavam vestidos trapézios, saia bambolé, calça baggy e semi-baggy, blusa manga morango, polanias de lã, faixas na testa com cores berrantes, tiara, cortes de cabelos em formato “v”, rabinhos da Babi, baton boka-loka roxo ou preto. Os rapazes de camisa hang-ten nas cores cristal grafite, moda sulf-wenr, tênis de lona-iate, relógio-calculadora.

- Chegamos, Denise.

- Aqui que é o CESE!? – Ela estranha por ser um prédio de madeira.

- Sim – respondeu Lena. – Nosso clube preferido.

É, realmente vocês gostam de pobreza!” – pensou Denise. 

 Estavam elas em uma rodinha, quando Sâmara apresentou Denise a Henrique, que as cumprimentou e continuou sua caminhada pelo salão. Sâmara disse à amiga:

- O Henrique é filho do maior fazendeiro dessa região. Todas as meninas são loucas por ele.

Nesse momento, o rapaz deu uma olhada pra trás, dando uma olhada maliciosa para Denise, que respondeu-lhe com seu charme feminino e logo os dois estavam juntos.

- Você é nova aqui?

- Sou sim, Henrique. Cheguei a pouco tempo de São Paulo.

- A cidade lá deve ser diferente, não é?

- É sim. O pessoal de lá é totalmente mais avançado do que os daqui. Os garotos lá, já chegam agitando. As músicas são mais loucas. Com doze, treze anos já se aprende a beber. O beijo já acontece nos primeiros encontros. E outras coisas mais.

- E você, Denise, levava essa vida?

- O que você acha? - Respondeu ela delicada, deixando uma dúvida no ar.

- Acho que sim! - Diz Henrique, tomando a liberdade de lhe dar um beijo, convidando-a:

- Que tal darmos uma volta de carro?

- Você quem sabe. E eu não posso demorar muito.

- Não Denise. Não vai demorar muito. Mas acho melhor você avisar suas amigas.

- Sim. Vou lá e já volto para irmos!

 

Depois de uma hora, eles voltam para o CESE. Denise separou-se de Henrique, indo ajuntar-se com suas amigas.

- Como foi, Denise? – Perguntou Carminha.

- Foi ótimo...

 Tininha mais uma vez, percebeu que Cássio não tirava os olhos de Denise. Cm ciúmes do relacionamento dela com Henrique, pensou: “Não vou dizer nada pra Denise. Vou deixar o Cássio dar no pé dela!” E assim foi...

 Já na madrugada, começou uma seleção de músicas lentas.

Cássio tomou coragem e foi até ela:

- Vamos dançar, Denise?

Ela inventou uma desculpa:

- Não Cássio. Estou indisposta. Fica para outra vez.

- Tudo bem, Denise.

Diz Cássio que virando-se, mas vê Henrique chegar e perguntar:

- Vamos dançar...?

-  Vamos. Eu estava louca pra dançar com você!  

* * *

Noite de domingo, Denise foi com suas amigas à praça municipal. Toda a população da cidade, parecia se reunir para passearem na praça. Crianças correndo, velhos conversando, casais de namorados andando de mãos dadas. Ao lado ficava o “Guaraçaí Clube”. Um clube social, onde aos domingos, realizava uma brincadeira dançante das oito e meia às onze horas.

- Você ainda não conhece o Guaraçaí Clube, Denise? - Pergunta Sâmara.

- Não. Ainda não conheço...

- Então vamos à brincadeira.

Ela logo se simpatizou com o clube. Era uma construção de paredes altas. A pista de dança rodeada de mesas. No canto o palco, com grandes caixas de som, com luzes coloridas. Ao lado o banheiro feminino. E em volta uma extensa varanda de grades de ferro, que dava vista para a praça e se estendia até o bar do clube.

Estavam as duas na varanda, quando chegou Henrique.

- Oi, como passou de ontem, Denise?

Ela pensou rápido:

- Só pensando em você...

- Bem ou mal?

- O que você acha? - Respondeu ela, com outra pergunta.

- Não importa isso. Você quer dançar comigo hoje?

- Sim, mas agora não.

- Tudo bem. Mais tarde eu volto.

 Cássio resolveu falar com Denise.

- Denise, eu queria falar com você...

- Sim, Cássio, pode falar.

Como ele era totalmente inexperiente, foi direto ao assunto:

- É que eu estou gostando de você. Quer namorar comigo?

- Você está é louco. Imagina se eu vou namorar com você? Um pobretão, que se veste mal. Não tem um pingo de cultura. Fala mal pra caramba. Nem se você fosse o último homem da terra. Ele sem dizer nada, sai cabisbaixo.

* * *

Segunda-feira, de volta às aulas, a professora expôs algo para turma:

- Bem. Todo ano, nós elegemos o líder e o conselheiro da classe. Sempre fazemos uma eleição secreta. Cada um escreve num papelzinho o nome da pessoa desejada e depois nós apuramos.  Mas hoje, vamos fazer uma eleição diferente. Cada um diz o nome da pessoa desejada e eu vou marcando na lousa. Quero lembrar que cada um vota em quem quiser.  Sâmara, abre a eleição...

- Eu voto na Denise.

- Tininha?

- Também, Denise.

- Lena?

- Denise...

- Cássio, em quem você vota?

“Vai votar em mim. Aposto!” - Pensou Denise.

E Cássio respondeu:

- Eu voto em mim professora!

- Em você!? - Espantou a professora, juntamente com Denise.

- É. Se cada um vota em quem quer, eu voto em mim.

- Está certo, Cássio. Agora você, Antônio Maria?

- Aí, Cássio. Senti firmeza. Voto no meu amigo Cássio. – Diz o rapaz, sendo seguido pelos meninos da classe, enquanto as meninas votavam em Denise.

Foi uma eleição corpo a corpo: Denise, Cássio, Denise, Cássio, Cássio, Cássio, Denise, Denise, Denise. Mas o número de meninas era maior. Para conselheira de classe, escolheram a professora de matemática, Dona Maria da Álgebra.

 

No recreio, Sâmara, chama Lena, Tininha e Carminha em um canto e propõe:

- Que tal, darmos uma festa surpresa, para comemorarmos a vitória de Denise?

E todas concordam. Na entrada, na volta à classe, Lena lhe diz:

- Denise, sábado vai ter uma festinha lá em casa e eu gostaria que você fosse...

- Vou sim, Lena. Mudando de assunto, quando irão começar as provas bimestrais? 

- Semana que vem - respondeu Sâmara.

* * *

Ao chegar em casa, depois de uma longa viagem no ônibus dos estudantes por estradas de terras, Denise almoçou e foi ao seu guarda-roupa. Voltou para cozinha, dizendo à sua mãe:

- Mamãe, sábado tenho uma festa e não tenho um vestido bom...

- Coloca aquele seu vestido amarelo, filha.

- Imagina mãe. Eu já o usei no sábado.

- Então o que você quer que eu faça?

- Compre-me um novo.

- Peça dinheiro pro seu pai. Se ele der, você mesma compra.

Seu Valmir gostava muito da filha. Por isso, deu-lhe o dinheiro.

  No outro dia, no café da manhã, Denise comunicou à sua família:

- Hoje eu venho mais tarde. Vou até a cidade vizinha matricular-me na aula de piano e comprar o novo vestido. - Sim, filha, Cuidado! – Recomendou seu pai.

* * *

Após a aula, Denise correu para a Rodoviária e tomou o ônibus. Sentou-se na poltrona logo da frente. Ao passar o trevo, o cobrador começou a picotar as passagens. Na volta pra cabine, Denise viu quando o cobrador bate com o picotador no vidro da porta para que o motorista abrisse pelo lado de fora. O motorista por ignorância, chamou atenção do cobrador pelo modo que usou para avisar que queria entrar na cabine. Cobrador e motorista começaram uma grande discussão, que levou a perca do volante, vindo a se chocar com um caminhão scania. Denise por estar na frente, foi atingida gravemente.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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