1 - AS RACHADURAS NA CALÇADA

O carro parou quase na esquina da subida da avenida. A moça, que havia pegado uma carona com uma amiga, desceu com uma bolsa de pendurada no ombro e alguns cadernos e livros nas mãos. Ao partir a sua amiga rumo ao seu trabalho, a moça abraçada ao seu material, pode ver do outro lado da avenida um extenso muro que dava volta em todo o quarteirão, exatamente o tamanho do terreno de toda a escola. Um prédio comprido e imponente de só um andar e muitas 

janelas que pareciam ser as classes. Uma edificação antiga de mais de sessenta anos, construída no alto do terreno. Daquele ângulo estava acima do muro. E entre o muro e o prédio havia um barranco e muitas árvores já de idade que faziam sombras às janelas.

A moça atravessou a avenida pisando na calçada da escola, mas o portão de entrada era na outra esquina. Estava um forte calor de final de fevereiro. Só que a moça vestia uma calça preta colada ao corpo, batinha, uma blusa escura de manga, como se não gostasse de expor o seu corpo. Magra e altura mediana, ela era mulata clara, cabelos lisos, compridos e com várias mechas loiras.

Começou a caminhar pela calçada onde várias árvores ofereciam sombras aos transeuntes e aos carros estacionados, muitos deles pertencentes aos professores e funcionários da escola. Começou a caminhar e, ao dar uma olhada para baixo, algo lhe chamou a atenção.

Em meio ao cimento frio e duro em pequenas rachaduras surgiam algumas minúsculas flores. Quase imperceptíveis aos olhos de todos que passavam por ali na pressa de seus afazeres, os cabos e as folhinhas em um verde claro e vivo. Sua flor do tamanho de uma unha, mas de um rosa claro, transmitindo beleza e paz. Flores tão pequenas, mas de muita garra ao romperem pequenas fendas e lutarem por sua sobrevivência, alimentando-se das poucas gotas de água que corriam pela calçada para oferecerem uma beleza despercebida.

A moça não teve dúvidas. Agachou-se, retirou o seu celular da bolsa e fotografou várias dessas singelas florezinhas.

Chegando ao portão da escola viu a rampa com corrimãos. Subiu cercada de plantas bem cuidadas dos lados. Lá Em uma grade que, se aberta, daria acesso ao pátio. Ao lado alpendre com quatro degraus, uma porta alta e de duas folhas com mastros de cada lado para estiar bandeiras e o nome do colégio gravado na parede: “Escola Municipal Professora Hideco Watabe”!

Ao subir a escada e adentrar à sua esquerda tinha um guichê de vidro escrito em cima: Secretaria. Uma moça de óculos e cabelos curtos veio atendê-la, sorrindo. A moça apresentou-se e perguntou pela diretora, sendo instruída a ir até a Sala dos Professores.

Virando-se, começou a reparar detalhes. Ao terminar a parede da secretaria havia um imenso corredor até o fim do prédio tendo portas de classes de ambos os lados. Tudo de ladrilho vermelho. À sua esquerda a entrada de uma sala em frente ao guichê, mais alguns passos a sala da Diretoria, outra era um consultório dentário e enfim ela passou por uma porta novamente de duas folhas.

Sendo uma área ainda coberta à esquerda estava a Sala dos Professores, uma construção mais recente. Ela não pode deixar de notar à direita um longo gramado bem cuidado entre o prédio principal e um pátio coberto. Ao centro haviam mais três mastros para culto às bandeiras. Olhando para frente, a moça observou várias mesas do refeitório.

Ela ficou insegura se deveria entrar na sala ou não. Uma mulher de meia-idade, gorda, baixa, com cabelos nos ombros e um andar meio bonachão saiu lá do meio das mesas vindo em sua direção. Aproximou-se, perguntando:

- Pois não, posso ajudá-la em algo?

- Boa tarde! Eu preciso me apresentar à dona Lígia Ester, a diretora – disse a moça em um sorriso em seu rosto sereno, olhos castanhos, sombrancelhas grandes e grandes lábios com batom vermelho: - Meu nome é Jéssica, sou a nova professora volante... 

- A sim, você é a nova sofredora aqui da escola – disse a mulher rindo, demonstrando-se uma pessoa descontraída: - Muito prazer Jéssica. Meu nome é Kottyna, sou a inspetora aqui da escola. Estou aqui só há 34 anos cuidando desses pestinhas. Aliás, vou falar baixo porque hoje com esse politicamente correto nem se pode mais brincar. Até hoje não sei porque eles inventaram esse tal de politicamente correto? Ele não melhorou nada na Educação nem nas relações humanas. Pelo contrário, só estimula mais brigas e discussões em uma sociedade onde cada vez mais todos de egos inchados querem ser donos da verdade e obrigar que todos pensem ou concordem com eles!

Jéssica deu uma risadinha concordando. Kottyna lhe disse:

- Espere um pouco, a Lígia Ester está numa pequena reunião, mas já está acabando.

E ali elas conversaram sobre alguns momentos assuntos da escola. Minutos depois um grupo de quatro mulheres foi saindo da Sala dos Professores. Entre elas uma vestida de roupa com muita cor e bijuterias. Uma comentou:

- Não sei por que essa coisa de inclusão agora? Eles deveriam ficar onde sempre estiveram...

Ao afastarem, Kottyna comentou com Jéssica:

- Essa é a professora Aparecida, um caso sério...!

Riram. Uma senhora bem-vestida discretamente, fina, aparentando uns 50 anos, saiu da sala, dizendo desanimada:

- Eu não sei o que vou fazer com esse povo, Kottyna...

- Manda para o tronco, Lígia Ester.

- Só você mesma para me fazer rir nesses momentos – disse a diretora gargalhando.

- Lígia Ester, esta moça bonita aqui é a Jéssica, a nova professora volante designada para trabalhar conosco este ano.

- Que coisa boa – disse Lígia Ester dando-lhe um abraço e um beijo: - Seja bem-vinda à nossa escola. Precisamos mesmo de gente de cabeça nova, mais aberta.

- Obrigada dona Lígia Ester. Quero lhe entregar o meu histórico profissional para a senhora dá uma olhada. Eu sou nova aqui na cidade. Meus pais se aposentaram, mudaram-se para cá e decidi vir junta. Apesar que lá onde eu morava já tinha mais de dez anos de magistério, aqui prestei o último concurso da Prefeitura, passei e estou ingressando este ano.

Lígia Ester pegou a pasta, pedindo-lhe:

- Eu posso ver mais tarde? Eu estou com uma dor de cabeça daquelas. E depois teremos o ano inteiro para conversar.

- Sim claro... Estimo melhoras à senhora.

- Obrigada Jéssica. Agora a Kottyna irá lhe mostrar toda a escola e apresentá-la ao pessoal.

Ao afastar-se a inspetora comentou:

- A Lígia Ester tem problema de enxaqueca. E motivo para dor de cabeça é o que não falta aqui por causa de um certo grupinho.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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