2 - O PRIMEIRO DIA DE AULA

  Estavam todos lá à minha frente. Realmente era uma turma bem variada.

- Bom dia a todos. Sou o novo professor de português de vocês e podem me chamar apenas de Vítor. Gostaria que antes de ser visto como um simples professor, vocês me considerem como um amigo. Estou aqui não só para ensinar, como também para compartilhar os momentos felizes e ajudar-lhes em suas dificuldades. Agora, fora o José que já conheço, gostaria que vocês se apresentassem um por vez.

- Meu nome é Izaura, tenho problema de visão.  Estou no terceiro colegial e frequento o Centro para aprender a leitura em Braille e reforçar meus estudos. Uma das minhas paixões é fazer poesia.

Ela se apresentou com uma voz leve e doce. Era uma pessoa calma, alegre e tranquila, sempre de bem com todos. Honesta e sincera, era a confidente de quase todas as moças do Centro. Excessivamente sentimental e sensível, tinha um jeito todo delicado para relacionar e conversar com as pessoas. Demonstrava a todo instante, a sua bela alma de poeta!

- Eu vi você ontem no corredor, Izaura, e fico muito contente que goste de poesia. Também escrevo algumas e até podemos um dia trazê-las aqui para mostrar ao pessoal. - Sugeri a ela que me sorriu com àqueles olhos castanhos e atraentes.

- O próximo?

-Sou a Tereza, estudo aqui no Centro, mas também curso teatro, que é a grande paixão de minha vida.

Tereza, era uma moça muito bonita, de causar uma boa aparência à primeira vista. Rosto redondo e cheio, pele macia, muito bem maquiada, olhos esverdeados, sempre com um lindo sorriso em sua boca vermelha e pequena de batom. Cabelo louro estilo chanel, que parecia ter um agradável perfume natural. Uma voz fina e melodiosa. Vaidosa, gostava de se vestir bem.

Sempre firme, mantinha ideias formadas sobre vários assuntos. Mostrava-se capacitada para ter liderança de grupo. Extrovertida e otimista, deixava facilmente transparecer suas reações e sentimentos, mesmo quando não solicitada. Por sua aptidão pelo teatro, podíamos observar que era uma pessoa expressivamente comunicativa. Estudava naquele ano no Centro por estar se adaptando a usar uma perna mecânica, pois havia perdido a sua devido a um câncer no joelho.

Mais um aluno se apresentou:

- Meu nome é Roberto, e acho que não tenho muito a falar de mim...

Ele me disse isso com dificuldade de dicção por ter paralisia cerebral, um tipo de deficiência onde os movimentos de pessoa podem ser estranhos ou descontrolados, podendo apresentar problemas na fala, como no seu caso.

Roberto era um rapaz alto, um tanto forte pelo seu tamanho. Gostava de ter cabelo comprido até o ombro, igual aos rapazes de sua idade. No rosto, traços japoneses herdados de seu pai. Olhos negros. Sempre sorridente, apresentava involuntariamente gestos faciais incomuns, sob formas de caretas, características de sua deficiência. Tratava-se de uma pessoa inteligente e sensível, sempre consciente de sua realidade. Nem introvertido e nem extrovertido, estava presente em todas as atividades. Alegre e otimista, marca de quase todos no Centro, sincero e atencioso, estava sempre pronto a ajudar aos demais colegas, demonstrando a sua preocupação para com o próximo. Desde o primeiro momento em que vi Roberto, percebi uma enorme vontade de vencer, assim como os demais.

Havia uma moça sentada ao fundo, numa cadeira de rodas, que não se apresentou. Apontei-a:

- E você, quieta aí no fundo, quem é?

- Sou a Márcia - respondeu-me num sorriso. - É que não gosto muito de falar, Vítor. Prefiro observar as pessoas, apenas.

A primeira impressão que tive foi que Márcia era uma pessoa reservada. Cabelo longo e preto, morena clara de 17 anos de idade. Rosto pontudo, olhos negros arredondados, muito bonitos, apesar de parecerem tristes. Nariz comprido e boca pequena. Voz num tom leve, baixa e mansa. Vestia-se sempre com trajes simples, não se preocupando com sua aparência.

- Você é tão bonita e fala bem, Márcia - observei. - Vou querer que se solte mais em minhas aulas. Aliás, quero contar com a participação de todos.

- Ela não gosta muito de falar, porque é muito romântica, vive presa em suas fantasias - observou José.

- Porque você não se mete com sua vida, seu anãozinho intrometido!!! -Márcia ficou brava.

- Calma, calma, pessoal! Não vejo nada de mais ser romântica e cultivar suas fantasias. As fantasias e ilusões são coisas muito bonitas. É uma dádiva ter esses dons.

Depois que acalmei o ambiente, percebi que um dos alunos não havia se apresentado.

- E você quem é?

Apontei-o com o dedo indicador. Nesse momento, Tereza tomou a palavra:

- Desculpe Vítor, esquecemos de apresentá-lo. Ele é o Edson, tem deficiência auditiva, não fala e nem escuta. É uma pessoa muito bacana e um grande dançarino.

Ele de início, parecia-me ser uma pessoa muito simpática que faz amizade com facilidade. De estatura média, nem gordo nem magro, estava sempre sorrindo. Cabelo curto, rosto redondo, olhos grandes e atento a tudo e a todos. Vestia-se com roupas jovens e alegres. Mesmo com a ausência da fala, era uma pessoa de extrema facilidade de comunicação devido ao seu temperamento otimista e tranquilo. Mantinha posição de liderança sobre o grupo quando a ordem era se divertir. Dançarino e extrovertido, deixava suas emoções e opiniões facilmente. Sentimental voltado para arte e dança, para Edson viver era a maior aventura da experiência humana.

Fiz um sinal para ele demonstrando o quanto estava feliz em conhecê-lo. Na linguagem gestual dos surdos ele disse que o prazer era todo dele.

Enfim, ali estava eu com meu cabelo encaracolado, grisalhos, como a cor de meu bigode, meu jeito de gozador, sempre de bem com a vida, sorrindo frente àquela turma.

Mal sabia eu que ainda haveria muitas coisas a descobrir.

Terminando nosso primeiro dia de aula, estava saindo da classe quando uma moça, tamanho médio, gordinha, cabelo preto e preso, óculos e muito simpática, abordou-me:

- Professor Vítor...?

- Sim!

- Sou a Celinha, psicóloga do Centro, posso conversar um pouco com você?

- Pode. Aqui mesmo na classe?

-  É, pode ser...

Entramos. Dentro da sala de aula, já vazia, tivemos uma longa conversa. Celinha começou falando-me

- Agora que você já conhece parte de nossa turma, gostaria de falar um pouco de cada um deles. Começando com a Márcia, não sei se notou, mas ela é uma pessoa que possui um certo ar de revolta.

- É, hoje mesmo houve um desentendimento entre ela e o José.

Nesse momento Celinha deu um sorriso e comentou.

- O José é um grande gozador que atormenta uns e faz a alegria de outros. Ele é uma pessoa de sorriso fácil, boa conversa, satisfeito com sua vida. É consciente de suas limitações e do que é capaz. Bem-humorado, está sempre entusiasmado e otimista quanto ao seu futuro. Graças a isto, tem uma grande facilidade de se relacionar e fazer amizade com outras pessoas.

- É, já percebi, ele tem um jeito que cativa fácil a gente...

Celinha pegou um papel em sua pasta onde havia algumas anotações e continuou falando.

- Mas como ia dizendo, a Márcia é uma pessoa de personalidade fraca, deixando-se levar facilmente pelas opiniões de outros, daquela pessoa que preferem obedecer ordens. Introvertida, está sempre calada, dificilmente deixa transparecer os seus sentimentos e reações, a não ser quando provocada, diante dos fatos, não tendo por hábito emitir suas ideias, principalmente quando não solicitada. Porém é uma moça extremamente sentimental, que demonstra preocupação com os seus semelhantes. Entre outras qualidades de Márcia, a principal é sua paixão pela música.

Uma coisa me intrigou naquele momento:

- Sim, Celinha, deve haver motivos para ela ter uma personalidade dessa...

- E há. Vítor. Acontece com ela muito sonhos aos seus amores platônicos, onde a realidade quase nunca corresponde com suas ilusões. Há ainda problemas de integração social por parte de seus pais.

- Uma superproteção no caso?

Arrisquei em perguntar, mas Celinha confirmou-me:

- Isto. Enquanto suas amigas saem para passear, ir à bailes, festinhas e lancheterias, ela tem que ficar em casa. Já Tereza tem essa autonomia, sendo até artista de teatro, assim como Izaura e outras moças aqui do Centro. Aí se pode ver a diferença de uma para a outra e podemos perceber ainda que cada caso é um caso. 

Conversamos também sobres outros alunos e seus problemas, mas o que mais preocupava Celinha naquele momento, era Márcia.

Os Centros de Reabilitação têm uma realidade pouco conhecida que foi explicada por Celinha. Segundo ela, dia após dia, meses após meses, anos após anos, as mães chegam às escolas especializadas trazendo nos braços uma criança com algum tipo de deficiência. Algumas chegam aqui com pouca idade (de 0 a 5 anos), outras já crescidas (de 10 a 15 anos), cheias de esperança de um dia melhorar e ser alguém.

Dentre os casos, nem tanto a criança, mas muitos pais se revoltam nos instantes iniciais ao saberem que a caminhada será penosa. Outros já vêm muito machucados, sendo pais separados por terem filhos com deficiências. E finalmente o grupo de pais que não esgotam as forças e dão novo impulso a fim de conseguir algo mais que pudesse tornar os filhos felizes, seguros e consciente de suas deficiências, tornando-os cidadão úteis à sociedade que pertence.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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